Manhã kafkiana

Um homem morreu hoje em minha rua.

Foi difícil acordar

a ressaca batia forte em minha cabeça

pesava meus olhos e retardava meu cérebro a entender

que já era hora de levantar

mas meu corpo pesava uma tonelada.

Tenho que entregar o caderno.

Nos encontramos quase em frente ao meu prédio

e fomos pra padaria da esquina da Domingos Ferreira.

Sucos de laranja e livros.

Kafka e Lispector.

O gato carneiro,

as pulgas do casaco de pele do guarda,

o cavalo preto e lustroso.

O abutre que me bicava os pés.

Kafka não é coisa pra se ler de manhã.

Um homem morreu na rua.

Morreu?

Agora?

É depressão, eu ouvi.

Se jogou da janela.

Lendo em voz alta os contos

ouvindo e absorvendo histórias.

Prosseguimos

O dia não estava tranquilo,

mas estava ensolarado como deveria ser.

Voltamos pelo lado oposto ao que viemos.

No lado da banca um mendigo

lia um cartaz sobre análise da sua pisada,

sua pisada que saía pra fora do chinelo

que lhe era um pouco pequeno,

o pé cascudo que foi ficando duro ao longo dos anos

pra aguentar a vida da rua.

Observava com atenção o cartaz

que dizia a importância de saber

onde fica o peso na pisada,

onde se concentra a força ao pisar,

mas isso é um luxo que ele não pode pagar.

A fotografia ficou pregada na minha memória

e ainda a estava vendo quando atravessava a rua

na direção de casa e via a multidão semi aglomerada

num misto de curiosidade horror e espanto.

Não quero ver.

Não sabia que estava tão perto.

Tão perto que parecem ter ouvido

os que estavam perto de mim

mas eu não ouvi ou ouvi sem saber.

Não quero ver.

Mas num movimento involuntário

meu pescoço se volta pra direção indesejada.

Cobriram com plástico preto.

Não vi. Não quero ver.

O plástico preto e o sangue escorrendo.

Combina com o Kafka que lemos

enquanto o momento kafkiano ocorria.

A vida adora uma metalinguagem.

Como desver o que não se queria

mas ao mesmo tempo devia querer

porque no final viu.

Como esquecer

É verdade, tem um pacote pra mim na portaria,

ela tinha me falado e eu esqueci, obrigada.

O pacote é grande e minha curiosidade passa a crescer também

na tentativa de esquecer o que os olhos viram sem querer ver.

Subo no elevador e quero chorar.

Mas não posso, não estou sozinha em casa

e tenho que engolir o choro

e fazer as lágrimas não se libertarem.

Tem um poema no pacote.

Pra mim.

Um soneto que mareja meus olhos

que ficam celacantemente marejados então.

Me emociono e não sei o que fazer e o que sentir.

Um dia que parecia não ter emoções

em 40 minutos se preenche de sensações esquisitas

que não sei se quero sentir, mas como não sentir?

Como não sentir?

Rio de Janeiro, 11/09/2016

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